Por Josias Fernandes Alves em 15/10/2013 na edição 768 - Observatório da Imprensa
Uma rede de radiocomunicação
digital, de alta tecnologia e uso exclusivo, interligando policiais e unidades
da Polícia Federal em pontos extremos do Brasil, cujos gastos ultrapassam US$
100 milhões e que deveria estar operante há quase dois anos, corre riscos de
não funcionar como foi projetada. Com sofisticado mecanismo de criptografia
para comunicação de voz e dados, que evita a interceptação de sinais, o projeto
prevê acesso a bases de dados criminais, identificação através de impressões
digitais, localização de veículos e pessoas através de GPS e pronta comunicação
através de celular ou rádio, em viaturas em movimento, por exemplo.
A partir da migração para a
plataforma IP, o mesmo usado pela internet, o sistema conhecido como Tetrapol
permitiria acesso a e-mail e redes coorporativas da PF, telefonia Voip e outras
funcionalidades e facilidades da internet. Na sua versão completa, nove centros
de controle estariam instalados em pontos estratégicos do território nacional,
com comando central em Brasília. Pelo cronograma, até novembro de 2011 estariam
ativas mais de 100 estações rádio base fixas, 220 repetidores digitais
independentes, 27 sites de gestão tática e 9 mil terminais móveis. Também foi
prevista uma plataforma de treinamento para capacitação de técnicos.
Viabilizar a comunicação em
serviços de rotina, operações especiais e o apoio da PF na segurança dos
grandes eventos foram algumas das justificativas para os investimentos. Às
vésperas da Copa das Confederações, realizada este ano, a PF recebeu novos
equipamentos, como veículos, robôs e roupas antibombas, mas os policiais
continuaram sem comunicação.
Um
desalento
Além de não funcionar durante
os eventos já ocorridos, é bem provável que a rede de radiocomunicação não
esteja operante para os próximos. Nem para os Jogos Olímpicos, em 2016, muito
menos para a Copa do Mundo, em junho do próximo ano. O Tetrapol é um item do
projeto da rede nacional de comunicação conhecida como “Integrapol”, prevista
no programa denominado “Pró-Amazônia/Promotec”, um acordo de cooperação
bilateral, assinado em 1997 pelos governos do Brasil e da França, com o
objetivo de reaparelhar vários setores da PF.
A primeira fase de
implantação da rede de radiocomunicação digital foi iniciada em 2005, no
Distrito Federal e nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Posteriormente,
algumas superintendências instalaram estações de rádio base, cujo alcance é
local. Os idealizadores do projeto talvez tenham dimensionado mal os custos e
as dificuldades para implantação de uma rede nacional de radiocomunicação, num
país com dimensões continentais. Escassez de recursos e de mão de obra
especializada para implantação da nova tecnologia, assim como desconfiança e
falta de conhecimentos técnicos por parte dos sucessivos gestores do projeto e
ocupantes de cargos de direção da PF (na maioria, bacharéis em Direito), dentre
outros fatores, comprometeram o cronograma de implantação da rede.
Em 2010, um dos diretores do
órgão sugeriu a extinção de vários cargos da carreira de apoio, entre eles o de
agente de Telecomunicações e Eletricidade, fundamental na implantação da rede. À
época, a PF pleiteava junto ao Ministério do Planejamento a abertura de novas
vagas para servidores desta área, justamente para fazer funcionar a Rede
Tetrapol. Foi um desalento para os técnicos que apostavam na viabilidade e se
esforçavam para implantar o projeto. Muitos deles foram remanejados para outras
áreas.
Rede
não funciona
Outras dificuldades
emperraram a expansão da rede, como entraves burocráticos nas negociações com
proprietários dos locais escolhidos para instalação de antenas e estações de rádio
base; limitação de recursos para obras de engenharia; falta de interesse das
operadoras para compartilhamento de antenas e incompatibilidades técnicas para
instalação de links, na ligação de estações base com os centros de comando, de
acordo com os protocolos de comunicação dos equipamentos. A falta de sintonia
com outros entes da administração pública federal, como a Agência Nacional de
Telecomunicações (Anatel) foi empecilho adicional para a concretização do
projeto.
Na prática, o que deveria se
tornar uma moderna rede nacional de radiocomunicação, até hoje não passou de
sistemas locais e isolados, através dos quais os policiais conseguem contato,
na melhor das hipóteses, num raio de poucos quilômetros. Centenas de novas
viaturas da PF nem foram equipadas com rádio, já que a rede de comunicação não
funciona.
Através do Sistema de
Informação ao Cidadão, a Divisão de Telecomunicações (Ditel) da PF, em
Brasília, confirmou que foram adquiridos e entregues às 132 unidades do órgão,
nas capitais e no interior,8.788 equipamentos novos. Quanto ao número de
aparelhos em uso e das unidades da PF que estariam interligadas pela rede, o
delegado-chefe da divisão sugeriu que fossem consultadas as 27
superintendências regionais do órgão. O chefe da Ditel talvez tenha ficado
constrangido em admitir o que a maioria dos policiais federais já sabe, há
anos: os terminais móveis não estão sendo usados porque a rede não funciona,
nem nunca operou de forma permanente. É improvável que o dirigente desconheça
que as unidades da PF, instaladas em regiões diferentes, não tenham condições
de se comunicar através da rede de radiocomunicação.
Custos
adicionais
Quando
são usados de forma esporádica, como simples rádios HT (hand talk), durante
operações policiais, após a instalação temporária de repetidoras e antenas, na
maioria das vezes, os terminais não funcionam de forma confiável, devido a
limitações de cobertura, tanto em área urbana quanto rural, principalmente em
áreas de relevo irregular. A maior parte dos rádios, importados da Alemanha,
está engavetada há oito anos. Muitos nunca foram usados. E talvez nunca sejam.
A vida útil prevista dos equipamentos adquiridos pela PF é de 20 anos.
De
acordo com reportagem publicada pela Folha de S.Paulo (9/6/2012), a decisão tomada pela Anatel
de alterar a frequência exclusiva dos órgãos de segurança pública, que foi
destinada à internet de alta velocidade e telefonia no campo, exigirá gastos
adicionais de até 30% dos investimentos já realizados, com a troca de
equipamentos, que deveria ser feita até 2015. A migração da faixa não era
novidade. Esta proposta foi submetida à Consulta Pública nº 682, pela Anatel,
em 2006. Naquele ano, Cristiano Torres do Amaral, especialista em Comunicações
Críticas da PM de Minas Gerais, já alertara sobre o problema que estaria se
criando para a radiocomunicação da segurança pública.
O
aviso parece ter sido ignorado por gestores do projeto da PF e da Secretaria
Nacional de Segurança Pública, do Ministério da Justiça, patrocinadora do
projeto de radiocomunicação digital, para a polícia do Rio de Janeiro, apontado
como um dos legados dos Jogos Panamericanos, de 2007.Na estimativa da própria
PF, feita há quase três anos, divulgada pelo Valor Econômico (10/1/2011), a mudança de faixa e
substituição de equipamentos, inclusive dos quase 9 mil terminais móveis,
implicaria custos adicionais de R$ 70 milhões (cerca de US$ 42 milhões, à
época, correspondente a R$ 92 milhões, em valores atualizados).
Maior
segurança e comunicação mais rápida
Depois de anos praticamente
sem uso, os equipamentos de rádio adquiridos pela PF deveriam ser substituídos
em dois anos, de acordo com as regras da Anatel, o que elevaria o custo do
projeto para cerca de R$ 300 milhões. Ainda assim, não estaria garantido que os
rádios passariam a funcionar, já que a rede de abrangência nacional não foi
concluída. Só para ilustrar, o valor total dos gastos seria suficiente para
contratar, pelo período superior a 50 anos (!), um plano corporativo de telefonia
móvel, oferecido por operadora com cobertura nacional, para 9 mil linhas, em
pacote que inclui ligações e mensagens ilimitadas para celulares da mesma
operadora, franquia limitada de ligações para outras operadoras, em qualquer
parte do país, além de acesso à internet. Sem contar a economia significativa
dos gastos atuais com telefonia fixa, caso a rede de radiocomunicação
funcionasse como deveria.
Os gestores da moderna rede
de radiocomunicação digital e criptografada (mas inoperante) da PF talvez aleguem,
com razão, que os serviços de telefonia celular oferecidos por empresas
privadas não têm a mesma segurança e eficácia de uma rede exclusiva própria. Na
definição do coronel W. Steven Flaherty, experiente chefe de polícia do estado
da Virgínia (EUA), o rádio é o “salva-vidas” do policial. “Quando segundos
contam, a comunicação clara e eficiente é que faz a diferença para um motorista
ferido, para a vítima de um crime ou um policial ferido.”
Contudo, um sistema de
telefonia celular vulnerável, sujeito a falhas e sobrecarga, ainda é melhor que
uma rede de radiocomunicação exclusiva, mas inoperante. Não apenas para
policiais, como em outras atividades de risco e serviços de emergência,
comunicação é elementar e imprescindível. Por razões óbvias, para policiais,
bombeiros, equipes de resgate e outros profissionais de serviços essenciais, a
conhecida advertência do Velho Guerreiro Chacrinha é uma realidade constante:
“Quem não comunica, se trumbica”. De acordo com especialistas da área de
telecomunicações, de fato, a radiocomunicação é mais eficiente do que a
telefonia celular convencional porque garante maior segurança às operações e
permite a comunicação mais rápida, direta, segura, independente de sinal de
cobertura de operadoras.
“Casa
de ferreiro, espeto de pau”
Esta é uma das justificativas
que constam da Portaria 30.491, editada pela Coordenação-Geral de Segurança
Privada, da própria PF, publicada no Diário Oficial da União, em 30/01/2013,
para regulamentar a forma de emprego dos meios de comunicação entre as empresas
de segurança privada e seus veículos, bem como entre os vigilantes que atuam na
atividade de transporte de valores. A nova norma prevê que “o sistema de
telefonia pode ser admitido em situações excepcionais, como forma de viabilizar
a comunicação ininterrupta quando não há possibilidade de utilização plena do
sistema de radiocomunicação”.
Outra justificativa é que a
alternativa do uso da telefonia propicia mais proteção à integridade física e à
vida de vigilantes, que poderão manter comunicação permanente com as bases
operacionais, durante toda a operação, onde quer que estejam. A portaria passou
a exigir que os veículos de transporte de valores sejam equipados com sistema
de radiocomunicação que envolva Serviço Limitado Móvel Especializado (SLME) ou
Serviço Limitado Móvel Privado (SLMP), com funcionamento em toda região
metropolitana das cidades onde as empresas de segurança mantêm unidades.
De acordo com a norma, “não é
aceitável que os vigilantes saiam do veículo utilizando apenas aparelhos que
dependam de cobertura de operadoras de telefonia celular ou radiocomunicação,
pois esse tipo de operação de alto risco requer comunicação rápida, direta,
compartilhada entre os vigilantes e que funcione mesmo sem qualquer tipo de
sinal ou cobertura de operadoras ou de sistemas SLME ou SLMP”. O rigor da PF
nas exigências às empresas de segurança privada faz lembrar o velho ditado
“casa de ferreiro, espeto de pau”. Por ironia, a mesma PF não disponibiliza aos
policiais nem radiocomunicadores, nem telefones celulares. Como se a execução
de serviços de segurança privada fosse de menor risco que a atividade policial.
Atualmente, na PF, apenas chefes de unidades (que raramente vão às ruas) contam
com telefones celulares funcionais.
Caso
de polícia?
Enquanto
isso, cerca de 2 mil carteiros, em todo o país, já estão usando smartphones,para
atualizar em tempo real as informações sobre a entrega de encomendas. A
previsão é que a ferramenta seja utilizada em breve para os todos os serviços
de entrega registrada, de acordo com recente notícia, divulgada pelos Correios.
A maioria dos policiais federais, durante as midiáticas operações ou no
trabalho rotineiro de investigações, se vê obrigada a usar telefones pessoais
em serviço, no contato com integrantes de equipes em missão, com outros
servidores públicos, testemunhas, informantes, pessoas e empresas investigadas
ou fiscalizadas pela PF e até com as próprias unidades onde são lotados.
Consultas remotas às bases de dados criminais, essenciais em qualquer trabalho
de campo, atualmente só são possíveis através de aparelhos particulares de
comunicação.
Numa
tentativa de suprir, na marra, a falta de meios de comunicação, no início do
ano, o superintendente da PF no Paraná ameaçou instaurar processos
disciplinares contra os policiais que se recusassem a usar o telefone
particular em serviço. Em Varginha, o chefe da unidade cogitou pedir a PM, para
acionar aqueles que se recusassem a usar seus telefones particulares em
serviço. Como se o policial fosse obrigado a manter telefone celular pessoal.
Em julho, após divulgação sobre equipamentos de raio X e detectores
de metais, no valor de R$ 1 milhão, comprados para uso nos Jogos Pan-Americano
de 2007, que estavam “esquecidos”, sem destinação definida, num depósito da
Superintendência da PF no Rio, o Grupo de Controle Externo da Atividade
Policial do Ministério Público Federal (MPF) instaurou um procedimento, para
cobrar providências dos gestores da PF, para que os bens fossem colocados em
efetiva operação.
No ano
passado, um relatório da Controladoria Geral da União (CGU) concluiu que a PF
não tem sistema adequado de controle de riscos de seus sistemas eletrônicos e,
há três anos, não cumpre o cronograma para melhorá-lo. A notícia foi divulgada após panes no sistema
central de computadores do órgão, que comprometeram a emissão de passaportes e
outros serviços. De acordo com a auditoria da CGU, não foi cumprida nem a
metade das ações previstas para melhorar a segurança da informação. Para quem
se preocupa com a aplicação de recursos públicos sempre escassos, tornam-se
inevitáveis alguns questionamentos, sem entrar no mérito das opções e critérios
técnicos que orientaram a aquisição dos equipamentos de radiocomunicação. Nem
nos interesses e lobbies comerciais de empresas e tecnologias
concorrentes, que disputam o milionário mercado.
O que o MPF, o CGU e o
Tribunal de Contas da União (TCU) teriam a dizer sobre o cronograma de
implantação da rede de comunicação da PF, que deveria ter sido concluída há
dois anos e até hoje não funciona? E quanto à situação atual de equipamentos
que nunca foram usados, cujos investimentos foram muito mais vultosos? E sobre
os prejuízos aos cofres públicos causados pela decisão da Anatel?
Seria apenas um problema de
gestão ou, sem trocadilho, mais um caso de polícia?
***
Josias Fernandes Alves é agente de Polícia Federal, formado em
Jornalismo e Direito e membro do Conselho Jurídico da Federação Nacional dos
Policiais Federais
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